segunda-feira, 5 de maio de 2014

A Técnica do Homem e a dos outros Animais

"O homem não é nenhum simplório, "bom por natureza" e estúpido; nem um semi-macaco com tendências técnicas, como Haeckel o descreve e Gabriel Max o pinta. Por sobre esses quadros cai ainda a sombra plebéia de Rousseau. Não, a tática de sua vida é a de um esplêndido animal de rapina, corajoso e cruel. Vive de atacar, de matar e destruir. Ele quer, e desde que existe sempre tem querido, ser senhor.

Significará isso, entretanto, que a técnica é na realidade mais antiga que o homem? Certamente não. Há uma enorme diferença entre o homem e os outros animais. A técnica destes últimos é uma técnica genérica. Não é inventiva nem susceptível de desenvolvimento. O tipo abelha desde que existe tem construído os seus favos exatamente como o faz agora, e há de continuar construí-los assim até a sua extinção. Os favos pertencem à abelha como a forma de suas asas e cor de seu corpo. As diferenças entre a estrutura corporal e o modo de vida só existem vistas do ângulo do anatomista. Se partirmos da forma interna da vida em vez de da forma externa do corpo como uma única e mesma coisa, expressões ambas de uma mesma realidade orgânica.  A "espécie" é uma forma, não do visível e estático, mas da mobilidade - uma forma não do ser-assim mas do fazer-assim. A forma corporal é a forma do corpo ativo.


As abelha, as térmitas e os castores erguem construções admiráveis. As formigas conhecem a agricultura, a construção de estradas, a escravidão e a guerra. A arte de criar os filhos, erguer fortificações e organizar as migrações se acha largamente difundida na natureza. Tudo que o homem pode fazer esta ou aquela espécia de animal já tem feito. São tendências que existem adormecidas sob a forma de possibilidades dentro da vida móvel. O homem nada realiza que não seja realizável pela vida como um todo.


No entanto, no fundo tudo isso nada tem a ver com a técnica humana. A técnica da espécie é inalterável. Eis o que significa a palavra "instinto". Estando o "pensamento" animal estritamente ligado ao agora e aqui imediatos e não conhecendo o passado e o futuro, não conhece também a experiência e a preocupação. Não é verdade que entre os animais as fêmeas se "preocupem" com os filhotes. Preocupação é sentimento que pressupõe visão mental futuro a dentro, interesse pelo que está por acontecer, do mesmo modo que o remorso implica em um conhecimento que aconteceu. Um animal não pode odiar ou desesperar. O cuidado da cria é, como tudo mais que se mencionou acima, um impulso obscuro e inconsciente como os que se encontram em muitos tipos de vida. Pertence à espécie não ao indivíduo.  A técnica genérica não é apenas inalterável, mas também impessoal. Pelo contrário, há até um fato único com relação à técnica humana: o de que ela é independente da vida do gênero humano. É o único caso em toda história da vida em que o indivíduo se liberta da coação da espécie.



Precisamos meditar longamente sobre essa idéia se quisermos apanhar-le a imensa significação. A técnica na vida do homem é consciente, arbitrária, alterável, pessoal e inventiva. Aprende-se e é susceptível de melhora. O homem se fez criador de sua tática de vida. Essa é a sua grandeza e a sua fatalidade. E à forma interna dessa criatividade chamamos cultura, - possuir cultura, criar cultura, padecer pela cultura.

As criações do homem são a expressão de sua existência em forma pessoal."






















[Oswald Spengler -O homem e a Técnica (1941), Edições Meridiano - Tradução de Érico Veríssimo - págs. 49, 50, 51 e 52]

O Direito e o Poder; a Classe e o Estado

O Estado é a História considerada imóvel; a História é o Estado considerado fluente. O Estado real é a fisionomia de uma unidade da existência histórica. Somente o Estado abstrato dos teóricos é um sistema.

Guerra
Um povo é real somente em relação a outros povos, e essa qualidade consiste em oposições naturais, irremovíveis, em agressão e defesa, em hostilidade e guerra. A guerra é a criadora de todas as coisas grandes. Tudo o que tem importância na corrente da vida originou-se através de vitórias e derrotas. Um povo plasma a história, enquanto estiver “disposto”. Vive uma história interna que lhe propicia as condições necessárias para que possa tornar-se criado, e uma história externa que consiste em criação. Os povos, como os Estados, são, portanto, as forças propriamente ditas de todos os acontecimentos humanos. No mundo como história, não há nada acima deles. São eles o destino.

Para cada povo – e para cada família – existe um círculo de membros, que se acham ligados em unidade de vida pela constituição igual de ser externo e interno. Essa forma, dentro da qual flui a existência, chama-se costume, quando se originar espontaneamente do ritmo do curso vital, para depois tornar-se consciente; denominamo-la direito, cada vez que for instituída propositadamente e se impuser o seu reconhecimento. O Direito é a forma voluntária das exições que lhe são caras, porém as possui como particular. A vida, ao contrário do indivíduo, carece de consciência.

Frederico Guilherme I - O Rei Soldado
O autêntico estadista é a História em pessoa, sua direção como vontade individual, sua lógica orgânica como caráter. Mas também deveria ser educador num sentido elevado. É bem conhecido o fato de que nenhuma nova religião jamais modificou o estilo da existência. As religiões impregnaram, isso sim, o homem espiritual e criaram inestimável felicidade pela força da abnegação, da renúncia, da paciência até a morte. Somente a grande personalidade, somente o elemento racial inerente a ela, podem realizar criações na esfera da vida e alterar o tipo de classes e povos inteiros. Não a verdade, o bem, o sublime, mas o romano, o puritano, o prussiano, são fatos. O senso de honra, a consciência do dever, a disciplina, a resolução, não se aprendem de livros. São despertados por modelos vivos. Por essa razão, foi Frederico Guilherme I um dos maiores educadores de todos os tempos, cuja influência pessoal formou a raça e não desapareceu na sequência das gerações. Isso se aplica também às Igrejas, que são coisas muito diferentes das religiões; a saber, elementos do mundo real e, portanto, têm, quanto à sua direção, caráter político. Cumpre acrescentar que o mundo foi conquistado, não pela prédica cristã, mas pelo mártir cristão. Se este teve força para tanto, devia-a, não à doutrina, mas ao exemplo dado pelo Crucificado.

Mais importante e mais difícil do que as tarefas imediatas da ação e do mandato é a missão de estabelecer uma tradição. O grande estadista é uma figura rara. Se ele aparece ou não, se consegue ou não impor-se, se isso ocorre cedo ou tarde, depende do acaso. Criar uma tradição significa eliminar o acaso. A grande fraqueza de Bismarck reside na omissão de formar, ao lado do corpo de oficiais de Moltke, uma raça de políticos de igual valor, e que se identificasse com o Estado e as novas incumbências do mesmo. Um povo “soberano” nasce somente de uma minoria perfeitamente criada, completa em si mesma; minoria que atraia à sua esfera todos os talentos, a fim de empregá-los, e que, precisamente por isso, harmoniza com o resto da nação governada por ela. O alcance dos êxitos obtidos por épocas posteriores corresponderá exatamente à força da tradição que pulsar no sangue do povo.

Política
A política é a arte do possível. Todo indivíduo ativo nasceu em determinado tempo e para esse tempo. Com isso fica definido o círculo do que lhe é possível obter. A arte política reside na visão clara das grandes linhas, imutavelmente traçadas, e mão firme, capaz de manejar o que for singular e pessoal. O fato de ter explodido uma revolução demonstra sempre falta de tato político, da parte dos governantes tanto como de seus adversários. As formas políticas são formas vivas, a modificarem-se em certa direção. Quem quiser estorvar tal desenvolvimento cessará de estar “em forma”. O necessário deve ser feito no momento oportuno, quando ainda for um regalo. A influência sobre os métodos políticos é muito escassa. Mas, para que alguém esteja “em forma” política, é preciso que disponha irrestritamente dos recursos mais modernos. Os meios do presente serão por longos anos ainda os parlamentares: eleições e imprensa. O estadista pode respeitá-los ou desprezá-los, mas tem de dominá-los.

A política é, por último, a arte de manter a própria nação “em forma”, para que ela possa enfrentar os acontecimentos exteriores. A política interna existe, exclusivamente, em função da política externa e não vice-versa. O mestre político evidencia-se mais claramente na habilidade de harmonizar a forma pública do conjunto - “os direitos e as liberdades” - com o gosto da época, sem diminuir a capacidade da massa; consegue-o pela educação de sentimentos, tais como confiança, respeito à chefia, consciência da força, contentamento e, se necessário for, entusiasmo. Mas tudo isso recebe o seu valor somente em consideração do fato fundamental de que nenhum povo está sozinho no mundo, e de que o seu futuro será decidido pelo confronto de seu poderio com o de outros povos e potências, e nunca pela mera ordem interna.

[Trecho retirado de A Decadência do Ocidente, de Oswald Spengler, p. 381 a 383; Editora Forense Universitária, 4ª edição, tradução de Herbert Caro]

domingo, 4 de maio de 2014

O Homem e a Mulher

"A oposição primordial entre o elemento cósmico e o microcosmo determina também a relação entre o homem e a mulher. A mulher é destino, é tempo, é a lógica orgânica do próprio devir. A história sem cultura das gerações sucessivas é feminina. O homem vive o destino e compreende a lógica do que deveio; concebe a casualidade conforme a motivações e efeitos. Mas a luta entre o homem e a mulher realiza-se sempre pelo sangue, pela mulher. A mulher é história, o homem faz história.

A história "feminina" é cósmica; a "masculina" é política. Porém o homem participa de ambas. Para ele, há dois tipos de destino, de guerra, de tragédia: o público e o particular. A isso se referia a distinção que os germanos faziam entre o "lado da espada" e o "lado da roca", no que tocava ao parentesco. Esse duplo sentido no tempo dirigido encontra sua expressão suprema nas idéias do Estado e da Família.

Tal oposição primordial repete-se para o homem que "faz" a história, em todas as situações importantes, sob a forma de um conflito que não somente aparece ao início de quaisquer culturas superiores, mas se aprofunda continuamente em seu curso. O equilíbrio no lado público da vida, o equilíbrio naquilo que constitui a corrente existencial de uma cultura superior, é mantido, enquanto as sequências de gerações que fazem a história tiveram um ritmo comum, quer dizer, enquanto tiverem "sangue" e "raça". No período posterior de uma cultura, a tensão que, no elemento microcósmico, costuma-se produzir entre o fator "vegetal" e o fator "animal" intensifica-se a tal ponto que se perde a ligação ao "solo": a consciência vigilante quer dominar a existência, a cujo serviço esteve anteriormente. Desse modo, desaparece o ritmo "natural-artificial", e pelo fim torna a irromper violentamente o elemento meramente cósmico: A vida volta a ser "feminina", não-histórica, desprovida de forma."

[Oswald Spengler - A Decadência do Ocidente (1964), Zahar Editores- Tradução de Herbert Caro - pág. 379]

Raças e Idiomas

[...] " A raça é algo cósmico, psíquico. Está sujeita a certas periodicidades e, no seu íntimo, é condicionada também pelas grandes relações astronômicas. Os idiomas, por sua vez, são formações casuais, a atuarem pela polaridade dos seus meios.

Uma planta tem raça, mas somente os animais são capazes de receber a impressões da raça. A vigilância de seres do reino animal é sempre um ato de falar, seja qual for o modo empregado. Ao lado de tal idioma de expressão, que se destina ao mundo, coloca-se um idioma de comunicação, que pretende ser compreendido por determinadas criaturas. Aquele pressupõe apenas uma vigilância; este requer ainda uma ligação de consciências vigilantes. Não é possível traçar um limite exato, quando se trata de culturas elevadas, com seu idioma de expressão artístico e religioso. Sob esse prisma, podemos encarar as palavras primordiais totem e tabu. Quase todas as religiões tem um idioma secreto (tabu).

Em cada língua viva há, além da parte do tabu,que é susceptível de ser aprendida, certo traço racial, completamente incomunicável, que não pertence ao idioma, mas à fala. O mesmo se aplica à arte: ela terá vida, quando os artistas falarem o idioma formal como uma língua materna comum.

A casa rural é a expressão mais pura que existe da raça. Com a arquitetura superior, a cultura recebe o seu caráter tabu. O castelo, casa da aristocracia, e a catedral exaltam a distinção entre totem e tabu, fazendo com que ela alcance um simbolismo poderoso. A catedral é, ela mesma, um ornamento; o castelo pode estender ornamentos, que, nesse caso, representa simples enfeites. Depois de a arte ter-se tornado profana, nos períodos posteriores de todas as culturas, as próprias igrejas barrocas acham-se apenas revestidas de ornamentação.

Os idiomas podem deslocar-se, ao contrário da raça, a qual recebe o se caráter da paisagem. Quem se desloca são homens pertencentes a determinada raça, que, em outro solo, pode converter-se em outra raça. Na América do Norte, as pessoas que ali nasceram, falam da mesma maneira, quer descendam de ingleses ou alemães ou de índios e empreguem os idiomas dos seus antepassados. As raças humanas distinguem-se pelo modo de falar e não pela estrutura gramatical do idioma. Com a alma da paisagem, modifica-se a do microcosmos. Nesse caso, não se trata de uma adaptação, no sentido de Darwin, mas de uma identidade metafísica de ambas as almas. Somente sentimos a própria peculiaridade de uma raça, em confronto com a expressão de uma corrente existencial, quando essa última tiver vida. Pode-se falar de uma luta entre o sangue e o solo. Nela se formam as raças de uma cultura elevada, as misteriosas forças cósmicas do ritmo comum de coletividades estreitamente ligadas entre si.

A raça é a expressão da vida e da alma, projeta sobre os sentidos dos homens, é a expressão de algo metafísico, a comunicar-se aos sentidos, ou de modo psíquico, ou de modo algum. A noblesse francesa ou a aristocracia rural da Prússia são genuínas designações de raças, como também o é o tipo do judeu europeu com sua imensa energia racial, armazenada em mil anos de gueto. O conceito de raça, tal como o estabelece a ciência, é por sua vez, puramente materialista, porquanto foi derivado de aspectos avulsos, superficiais. O que importa é a expressão do movimento e não a da situação."


[Oswald Spengler - A Decadência do Ocidente (1964), Zahar Editores- Tradução de Herbert Caro - págs. 288 e 289]

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Capitalismo e Socialismo [II]

"[..] O "Capitalismo de baixo" quer negociar a mercadoria "trabalho assalariado" ao preço mais alto possível, sem levar em consideração a capacidade de aquisitiva do comprador, e quer fornecer a mínima quantidade. Daí o ódio dos partidos socialistas contra o trabalho de qualidade e de empreitada; daí a sua tendência a suprimir, quanto possível, a diferença "aristocrática" entre os ordenados dos operários qualificados e dos que não têm conhecimentos de um ofício. Esses partidos querem aumentar o preço do trabalho manual por meio de greves - a primeira greve geral teve lugar na Inglaterra em 1841, - e, por fim, depois da expropriação das fábricas e das minas, fazê-lo fixar livremente pela burocracia dos chefes trabalhistas que então governariam o estado.

Pois que este é o sentido secreto da socialização. O "capitalismo de baixo" qualifica como roubo a propriedade adquirida pelo trabalho dos talentosos e superiores, para poder apoderar-se dela, sem trabalho, pondo em jogo o maior número de punhos. Assim nasce a teoria da luta de classes, que tem organização econômica, mas sentido político, adaptando-se a primeira aos sentimentos dos operários e o segundo ao proveito dos chefes trabalhistas.

Tratava-se de uma finalidade sem duração. Espíritos baixos nem se quer são capazes de estender o olhar, além do dia de amanhã, à distância dos tempos, nem de atuar para o futuro. A luta de classes devia conseguir destruição, nada mais. Devia desembaraçar-se das forças da tradição, tanto da política quanto da econômica, para dar a vingança e o domínio almejados aos poderes do submundo. Esses círculos nunca gastaram reflexão alguma pensando no que pudesse acontecer depois da vitória, uma vez que a luta de classes se tenha convertido num passado distante.

Assim começa, a partir de 1840, um ataque aniquilador à verdadeira vida econômica dos povos brancos, infinitamente complicada, ataque que se faz de dois lados: pelo grêmio dos negociantes de dinheiro e especuladores da alta finança, penetrando a vida econômica por meio das ações, do crédito e dos conselhos de administração, e fazendo depender dos seus interesses e das suas intenções o trabalho diretivo dos empregados profissionais, entre os quais se encontram muitos antigos trabalhadores manuais que subiram pelo próprio empenho e gênio. O verdadeiro chefe da economia chega a ser escravo do financista. Enquanto trabalha para o bem-estar de uma fábrica, pode acontecer que no mesmo instante ela seja arruinada por uma especulação da bolsa que ele mesmo ignora. 



E ademais, de baixo, o sindicato dos chefes trabalhistas destrói lenta e fatalmente o organismo da economia. A arma teórica de uns é a sábia ciência econômica "liberal" que forma a opinião pública a respeito dos problemas econômicos, intrometendo-se em forma consultiva e determinante na legislação; a arma dos outros é o Manifesto Comunista, com cujos princípios também intervêm as esquerdas de todos os parlamentos. E ambos defendem o princípio da "Internacional", princípio que é puramente niilista e negativo: dirige-se contra as formas históricas delimitadoras - cada forma, cada figura é limitação, - contra as formas do Estado, da nação, das economias nacionais, cuja soma representa a "economia mundial". Essas formas estorvam os planos da alta finança, tanto quanto os dos revolucionários profissionais. Por isso negam-nas e querem destruí-las.

Mas ambas as espécies de teoria estão hoje antiquadas. O que se pode dizer está dito a muito tempo, e ambas, a partir de 1918, ridicularizaram-se tanto a si próprias, pelas suas profecias - A respeito de Nova- York ou de Moscou, - que já somente são citadas, sem que ninguém acredite nelas. A revolução mundial começou à sua sombra. Talvez ela tenha chegado hoje ao seu auge, mas está longe de terminar. Mas, de qualquer forma, adota formas que estão livres de todo palavreado teórico."



[Oswald Spengler - Anos de Decisão (1941), Edições Meridiano- Tradução de Herbert Caro- págs. 128, 129 e 130]

Capitalismo e Socialismo [I]

"[...]"O Capitalismo" não é de todo uma forma de economia, nem um método "burguês" de fazer dinheiro. É uma maneira de ver as coisas. Há economistas que o encontraram na época de Carlos Magno e nas aldeias dos tempos primitivos. A ciência econômica, a partir de 1770, considerava a vida econômica, que em realidade é apenas um lado da existência histórica dos povos, do ponto de vista do comerciante inglês. Nesse tempo,a nação inglesa, de facto, estava a ponto de monopolizar o comércio mundial. Daí a sua reputação de povo de comerciantes, de massa de shopkeepers. O comerciante, porém, é apenas um intermediário. Ele pressupõe a própria vida econômica, procurando fazer de sua vida econômica o centro de gravidade dela, do qual todos os homens dependem na sua qualidade de produtores e de consumidores. 




Essa situação potencial foi descrita por Adam Smith. Eis a sua "ciência". É por isso que a ciência econômica parte, até os nossos dias, do conceito de preço, e, em vez da vida econômica e dos homens ativos, vê apenas mercadorias e mercados. É por esse motivo que desde então o trabalho é considerado como mercadoria e o salário como preço, sobretudo pela teoria socialista. Neste sistema não cabe nem o trabalho dirigente do empregador e do inventor, nem o trabalho do camponês. Somente se vêem mercadorias fabricadas, ou aveia ou porcos. E, passado pouco tempo, esquece-se completamente o camponês e o artífice e pensa-se, como Marx, na classificação dos homens em apenas duas classes: O operário assalariado e - os outros, os "exploradores".




Deste modo nasce a divisão artificial da "humanidade" em produtores e consumidores, que, nas mãos dos teóricos da luta de classes, se transformou no contraste pérfido de capitalistas e de proletários, de burguesia e de operariado, de exploradores e de explorados. Mas não se fala a respeito do comerciante, do verdadeiro "capitalista". O dono de fábrica e o agricultor são os inimigos visíveis porque eles tomam o trabalho e pagam os ordenados. Isto não tem sentido, mas é eficaz. A estupidez de uma teoria nunca foi um obstáculo para a sua divulgação. Para o autor de um sistema o importante é a crítica; para os crentes é o contrário.

O capitalismo e o socialismo têm a mesma idade, são interiormente parentes, têm a sua origem na mesma maneira de pensar e levam as mesmas consequências. O socialismo é senão o capitalismo da classe baixa. A doutrina livre-cambista manchesteriana de Cobden e o sistema comunista de Marx nasceram ambos aos 1840 e na Inglaterra. Marx ainda aplaudia o capitalismo livre-cambista:

"Em geral, hoje em dia o sistema protecionista é conservador, enquanto que o sistema livre-cambista tem um efeito destruidor. Decompõe as antigas nacionalidades e exacerba a oposição entre proletariado e burguesia. Numa palavra, o sistema de livre-câmbio acelera a revolução social. É somente nesse sentido que voto pelo livre câmbio."
Karl Marx, 1847 - Miséria da Filosofia


[Oswald Spengler - Anos de Decisão (1941), Edições Meridiano- Tradução de Herbert Caro- págs. 126 e 127]




domingo, 27 de abril de 2014

A Cultura e a Honra em uma Sociedade

[...] "A cultura é uma planta. Quanto mais perfeitamente uma nação representar uma cultura - a cujas criações mais nobres sempre pertencem os próprios povos culturais, - quanto mais estritamente ela estiver moldada e plasmada no estilo de uma verdadeira cultura, tanto mais ricamente articulado, segunda a classe e a ordem, será o seu talhe. Haverá distâncias respeitáveis entre os camponeses arraigados à terra e as camadas dirigentes da sociedade urbana. A altura do nível da formação, da tradição, da disciplina e dos costumes, bem como a superioridade inata das estirpes, círculos, personalidades dirigentes, determinam aí o destino da totalidade.

Uma sociedade neste sentido não está sujeita às classificações e utopias racionalistas; em caso contrário cessa de existir. Antes de tudo, ela se compõe de jerarquias e não de "classes econômicas". O ponto de vista materialista-inglês, que se desenvolveu a partir de Adam Smith ao lado do racionalismo crescente e sobre a base dele, sistematizado a quase 100 anos por Marx, de um modo cínico e trivial, não se justifica pelo fato de ter imposto e de dominar, neste momento, todo o pensar, ver e querer dos povos brancos. Nada é senão um indício da decadência da sociedade. 

Já antes do fim desde século,  levantar-se-á a pergunta admirada de como se pôde levar a sério uma classificação das formas e das diferenças sociais em "empregadores" e "empregados", isto é, a quantidade de dinheiro que cada um tenha, ou queira ter, como capital, renda ou salário, sem se considerar de toda a maneira como foi esse dinheiro obtido e como ele foi convertido em verdadeira propriedade, maneira essa que depende intimamente da posição social. Esse é o ponto de vista de parvenus e de sujeitos baixos que, no fundo, são do mesmo tipo, a mesma flor do pavimento da grande cidade, desde o ladrão e o agitador da rua até o especulador da bolsa e da política de partido.

Mas "sociedade" significa ter cultura, ter forma até no menor detalhe da atitude e do pensamento, uma forma que tenha sido criada pela seleção incessante de estirpes inteiras. "Sociedade" consiste no ter uma moral e uma concepção de vida severas, a penetrarem todo o ser com milhares de deveres e compromissos, nunca pronunciados e raras vezes conscientes, mas que convertem todos os homens que a professam numa unidade viva que estende, amiúde, além das fronteiras da nação. São exemplo disso as nobrezas da época das cruzadas e do século XVIII. Eis o que determina o valor; é a isto que se chama "ter mundo".


Já nas tribos germânicas designava-se isso, de uma forma quase mística, pela palavra honra. Essa honra era uma força que impregnava toda a vida das estirpes. A honra pessoal era apenas o sentimento da responsabilidade incondicional do indivíduo pela honra da sua classe, da sua profissão, da sua nação. O indivíduo vivia a existência da comunidade , e a existência dos outros era, ao mesmo tempo, a sua. O que ele fazia, arrastava consigo a responsabilidade de todos. Naquela época, um homem morria não somente animicamente quando perdesse a sua honra, quando o seu sentimento de honra, ou o dos seus houvesse sido mortalmente ferido, quer por sua culpa, quer pela culpa de outrem. Tudo quanto se chama dever, o elemento fundamental de todo verdadeiro direito, a substância básica de qualquer costume nobre, tem a sua origem na honra.

A casta dos camponeses tem a sua honra, assim como a dos artificies, o comerciante como o oficial, o funcionário público como as velhas famílias principescas. Quem não a tem, quem "não se importa" de estar numa situação decente perante si mesmo e perante seus semelhantes, é "vulgar". Eis o que é contrário a distinção, no sentido de qualquer sociedade legítima, e não a pobreza, nem a falta de dinheiro, como crê a inveja dos homens dos nossos dias, depois que se perdeu qualquer instinto para apreciar a vida e o sentimento nobre, sendo que essa perda é consequência de uma época em que as maneiras públicas de todas as "classes" e de todos os "partidos" são igualmente plebeias.[...]"

[Oswald Spengler - Anos de Decisão (1941), Edições Meridiano- Tradução de Herbert Caro- págs. 83, 84 e 85]