segunda-feira, 5 de maio de 2014

A Técnica do Homem e a dos outros Animais

"O homem não é nenhum simplório, "bom por natureza" e estúpido; nem um semi-macaco com tendências técnicas, como Haeckel o descreve e Gabriel Max o pinta. Por sobre esses quadros cai ainda a sombra plebéia de Rousseau. Não, a tática de sua vida é a de um esplêndido animal de rapina, corajoso e cruel. Vive de atacar, de matar e destruir. Ele quer, e desde que existe sempre tem querido, ser senhor.

Significará isso, entretanto, que a técnica é na realidade mais antiga que o homem? Certamente não. Há uma enorme diferença entre o homem e os outros animais. A técnica destes últimos é uma técnica genérica. Não é inventiva nem susceptível de desenvolvimento. O tipo abelha desde que existe tem construído os seus favos exatamente como o faz agora, e há de continuar construí-los assim até a sua extinção. Os favos pertencem à abelha como a forma de suas asas e cor de seu corpo. As diferenças entre a estrutura corporal e o modo de vida só existem vistas do ângulo do anatomista. Se partirmos da forma interna da vida em vez de da forma externa do corpo como uma única e mesma coisa, expressões ambas de uma mesma realidade orgânica.  A "espécie" é uma forma, não do visível e estático, mas da mobilidade - uma forma não do ser-assim mas do fazer-assim. A forma corporal é a forma do corpo ativo.


As abelha, as térmitas e os castores erguem construções admiráveis. As formigas conhecem a agricultura, a construção de estradas, a escravidão e a guerra. A arte de criar os filhos, erguer fortificações e organizar as migrações se acha largamente difundida na natureza. Tudo que o homem pode fazer esta ou aquela espécia de animal já tem feito. São tendências que existem adormecidas sob a forma de possibilidades dentro da vida móvel. O homem nada realiza que não seja realizável pela vida como um todo.


No entanto, no fundo tudo isso nada tem a ver com a técnica humana. A técnica da espécie é inalterável. Eis o que significa a palavra "instinto". Estando o "pensamento" animal estritamente ligado ao agora e aqui imediatos e não conhecendo o passado e o futuro, não conhece também a experiência e a preocupação. Não é verdade que entre os animais as fêmeas se "preocupem" com os filhotes. Preocupação é sentimento que pressupõe visão mental futuro a dentro, interesse pelo que está por acontecer, do mesmo modo que o remorso implica em um conhecimento que aconteceu. Um animal não pode odiar ou desesperar. O cuidado da cria é, como tudo mais que se mencionou acima, um impulso obscuro e inconsciente como os que se encontram em muitos tipos de vida. Pertence à espécie não ao indivíduo.  A técnica genérica não é apenas inalterável, mas também impessoal. Pelo contrário, há até um fato único com relação à técnica humana: o de que ela é independente da vida do gênero humano. É o único caso em toda história da vida em que o indivíduo se liberta da coação da espécie.



Precisamos meditar longamente sobre essa idéia se quisermos apanhar-le a imensa significação. A técnica na vida do homem é consciente, arbitrária, alterável, pessoal e inventiva. Aprende-se e é susceptível de melhora. O homem se fez criador de sua tática de vida. Essa é a sua grandeza e a sua fatalidade. E à forma interna dessa criatividade chamamos cultura, - possuir cultura, criar cultura, padecer pela cultura.

As criações do homem são a expressão de sua existência em forma pessoal."






















[Oswald Spengler -O homem e a Técnica (1941), Edições Meridiano - Tradução de Érico Veríssimo - págs. 49, 50, 51 e 52]

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